"Vamos jantar fora amanhã, sou eu que estou a convidar" disse Cércyo em plena sala da casa de Suão Paluze, após mais um gole do café com cheirinho, como é do seu agrado. Poldy, após esta frase arrojada do marido, olhou para ele e retorquio "massss vamosss a um sitio à vossa escolha que não seija muito caroze". Mariló que estava ao lado de Suão Paluze, encolheu os ombros, como quem diz "já tou acostumada com a porcaria dos jantares fora quando são eles a convidar", nesta altura do campeonato Mariló ainda não tinha amalucado de vez. Por sua vez, Suão Paluze, olhou para Suana, sua filha, esboçou um sorriso e virou-se para Cércyo dizendo "ok, então vamos à picanha ali ao brasileiro", o brasileiro era um pequeno e simpático restaurante, em Massaboa, sobúrbio da linha de Sintra, mas que servia uma excelente picanha e tinha uma bela carta de vinhos.
Tudo ficou combinado para o dia seguinte, embora Poldy, na despedida não conseguisse disfarçar um sopro de indignação, isto já a pensar na despesa do jantar.
Eram já um quarto para as oito da noite quando o belo, mas amolgado, carro nipónico de Cércyo e Poldy começava a odisseia de estacionar no parque traseiro à residência de Suão Paluze, Mariló e Suana. Mais pancada para aqui, mais pancada para acoli e eis que a velha sai do veículo para ajudar o marido - que para ajudar à festa é surdo que nem uma porta - a arrumar o popó. "Maisss para tráze, viraze agoraze, devagareze, troce, troce troce, vá tá quase" dizia a velha aos gritos e o velho fazia tudo exactamente ao contrário. Três ou quatro raspadelas depois e volvidos 20 minutos, a "bomba" nipónica estava estacionada. Suão Paluze e Suana, sua filha, estavam há muito à janela apreciando este autênrico espectáculo, ainda por cima gratuito.
"Bom, vamos descendo" diz logo Suão Paluze, no intuito de abreviar a situação e de evitar que a velha ainda resolvesse subir para fazer um xi-xi.
Como o restaurante do brasileiro ficava apenas a um quarteirão de distância a deslocação foi feita a pé. Como sempre, nem caminhando para o restaurante a velha se calava, e via-se nos seus esbogalhados olhos a preocupação antecipada com a conta no final do jantar que ainda não tinha começado.
De chagada ao restaurante, o dono, o tal brasileiro, pessoa simpática e de trato afável, dirigiu-se a Suão Pauluze que já era cliente habitual e perguntou "Olá como está, é uma mesa para cinco? Pode escolher á vontade!" e foi o que Suão Paluze fez. Chegam logo as primeiras entradas, manteiga d'alho, uns nacos de presunto, uns queijinhos secos e uns quadradinhos de melão, a que todos se atiram com unhas e dentes, enquanto Suão escolhia o vinho mais adequado para o repasto que iria ser picanha na pedra com feijão preto, prato este que no brasileiro faziam divinalmente. Poldy, indignada com tanta fartura diz rapidamente "ai Zezus eu com estass coizasss todas para comereze nas entradazess, já nem, pedia maisss nada, issssto chegava e sobrava" e ainda acrescentou, quase em termo de ameaça e de olhos quase a saír das órbitas "achoze que valeze a penaze pedir uma dozeze para cada unze, talvessssduas dozesss cheguem para os cinco!" e ainda disse mais "eu já essstou cheiaze e a Suana quaze não come nadaze". Mariló encolheu os ombros mais uma vez, Suão Pauluze ignorou o que a velha dizia e Cércyo que era igualmente forreta, mas disfarçava melhor, disse "pede lá o que quiseres e achares melhor, Suão, hoje sou eu que pago". Entretanto, Suão pede ao brasileiero um bom tinto alentejano de Pias para acompanhar a carne. Poldy mais assustada ficava.
Entre a prova do vinho e o que sobrava do presunto e do queijo, Poldy não se calava, falava do Salazar e da sua adoração pelo mesmo, da época em que tinha estado em África quando era educadora dos pretinhos e da felicidade daqueles tempos que infelizmente, para ela, tinham acabado. "Nesse tempoze é que eu era felize, mas entregaram tudo de mãosss beijadass aos pretozes" e disse mais "nós é que tivemozes de vir com uma mãoze à frenteze e outra a tráze, foi uma dezegraçaze". Suana que já era crescidinha e sabia mais ou menos o que tinha sido o tempo do fascismo em Portugal, olhou para o Pai e fez uma careta de reprovação pelo que a avó dizia. Entretanto o velho tenta mudar de assunto porque sabia que Suão não as perdoava à velha e daqui pouco haveria discussão. Mariló, entretanto, provava o vinho.
Picanhas na mesa e tudo a dar ao serrote.
Cércyo fazia a as honras às iguarias com o seu habitual ar próspero, enquanto Poldy ia comendo quase que a medo, como se esse facto fosse baixar a conta no final do jantar.
Mais um bocadinho de vinho neste copo, mais um bocadinho naquele e eis que a garrafa começava a ter aspecto de estar rota... Sem vinho.
Ainda a picanha não ia a meio.
Suão chama o brasileiro e pede mais uma garrafa daquele Pias que estava uma delícia. Poldy sentiu-se apanhada desprevenida, soaram os alarmes no seu diminuto cérebro e ainda tentou salvar a situação para a sua carteira dizendo "ai tanto vinhoze Cércyo, olha que aindaze vaize conduzireze, era melhoreze pedirezes só meia garrafaze", o que não deu efeito pois o brasileiro já estava a sacar a rolha da segunda garrafa. Poldý transpirava de raiva, Cércyo transpirava de tanto comer que nem um alarve, Suão transpirava de ouvir a matraca da velha, Mariló transpirava dos primeiros afrontamentos da pré-menopausa que fez com que mais tarde amalucasse de vez. Só Suana, tranquila, ria e não transpirava.
E chegava a hora das sobremesas.
De novo a velha em estado de choque.
Suana pede um gelado, Suão e Mariló dividem uma fatia de bolo brigadeiro e Cércyo fica entalado, já que Poldy teimava a pés juntos que não queria mais nada, deixando assim o velho que era muito guloso sem parceiro para dividir uma sobremesa. Mariló salva a situção e diz "vá lá mamã, dias não são dias, divide lá uma coisa que gostes com papá", ao qual Poldy acaba por ceder. Cércyo é que ficou a ganhar pois acbou por comer também uma fatia de bolo e Poldy pouco ou nada comeu dele, do bolo claro.
"Cafés?" pergunta o brasileiro, ao qual Suão Paluze responde "são quatro e um descafeinado", é que a velha não bebe café porque diz que fica nervosa e com taquicárdia, o que no fundo até é bom, já que se é impossível de aturar sem café, o que seria com ele. "Não queres um digestivo, Suão" diz Cércyo de novo com aquele ar de falso próspero, e Suão acena para o brasileiro pedindo um Jameson. é neste momento que velha parece desintegrar o seu próprio corpo de tanta raiva, a pensar na conta.
Entre o saborear do café e do Whisky Irlandês, Cércyo, atulado de comida até à glote e já alegrote da vinhaça de Pias com 14 graus, vai contando pela 35.ª vez as mesmas histórias, todas quase sempre durante, segundo ele, os tempos de ouro passados em áfrica.
"Bem, vamos pedir a conta diz Cércyo para Suão Paluze", ao qual Suão obedece acenando ao brasileiro para que faça a soma. Suana ri, mas ri com gosto olhando para poldy nesse momento, chamando a atenção dos demais e de Suão Paluze, também. Realmente o caso não era para menos, Poldy estava em pânico e antes mesmo de ficar vermelha que nem um tomate, já tinha estado azul e verde.
Cércyo, tal como tinha prometido, embora a custo, paga a conta. Poldy insiste em saber quanto tinha sido a despesa e diz "podiamozes terezes comido só duas dozes para os cinco, não tinhamozes tocadozes nas entradazes e não comiamozes sobremezazes" e ainda reclamou mais "nósss, eu e o Cércyo, lá em Vijeu vamozess a um snekeze-bareze, dividimoze uma sopaze, comemozes uma dozeze para os doisss e ficamozes satisfeitozes" - ninguém comentou mais nada.
No caminho para casa mais uma vez Poldy matraqueava a cabeça dos outros com os seu disparates "ai Zezus, Zezus, tou tão cheiaze que nem possoze, acho que comi para trêss dias"
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